Caro amigo guineense (da colonialidade)
Caro amigo guineense, vamos falar da colonização.
Para consolidar-se como nação e poder brincar no clube das nações, o clube chamado Nações Unidas, a Guiné-Bissau precisou de promover unidade dentro do território que lhe foi atribuído e baseou-se para isso na ideia da guinendade, uma ficção em constante transformação que é atirada sobre o povo dessa nação, usando o kriol para dar cor e para iluminar todos os povos como um só. Os ventos da guinendade, aparentemente mais simpáticos que os da portugalidade, na verdade, não são assim de tão diferentes ares. Portugal já tinha falado que todos os povos eram o mesmo, embora o tratamento e o direito aos direitos dissessem o contrário, e Guiné-Bissau diz também que todos os povos são o mesmo, mas retira-lhes também direitos. E como nação, a Guiné-Bissau, ou melhor, as pessoas que tratam da sua governação, fazem uma condução, onde se comportam como marionetas, adoptando uma postura pateta perante o ocidente que as manieta porque, na verdade, quem puxa as cordas são os estados europeus, nomeadamente Portugal e França, e quem dirige a dança e que tira a esperança da ambicionada autonomia é o FMI. A guinendade é uma concepção que move a nação, mas a guinendade usada pelo estado só serve para acalmar os ânimos e tornar os povos em asnos, prontos para serem explorados.
Caro amigo guineense, a guinendade vendida pelo estado com o nome de patriotismo é apenas uma forma de colonialismo, e pior ainda, ao serviço do neocolonialismo e do eurocentrismo, alimentando o racismo, o colorismo, o tribalismo, dá-lhe o “ismo” que quiseres. A guinendade é também usada para ofuscar as diversidades das culturas locais em nome de uma unidade dita nacional e uma representatividade quase oficial, mas vazia e irregular, do que é ser um guineense; o estado procura tornar igual até na prática do pensamento cultural todos os povos do território. Por esta, entre outras, é que digo que o estado guineense é colonial.
Caro amigo guineense, uma das muitas críticas que se pode fazer da prática cíclica da destruição dos sonhos e dos territórios dirigidos pelo estado da Guiné-Bissau é a sua relação com a natureza e a permissão que os governantes dão para a natureza ser violada em nome do lucro. De modo corrupto e de modo dito legal, há muitos acordos assinados pelo estado que só trazem pobreza e escassez aos povos que habitam os territórios explorados. Nas últimas décadas, membros dos diferentes governos e chefias militares viraram os maiores traficantes… de… madeira. Usando a seu bel-prazer o poder de representar o povo para lesar e magoar o próprio povo, em nome do lucro, em nome do desenvolvimento sustentável, mas de prática execrável. O mar foi aberto para barcos da União Europeia com o pretexto de melhorar a economia, mas ainda assim todos os dias queixam-se dos pequenos pescadores e dizem que são eles os destruidores da ecologia e da economia. Vendem-se muitos hectares de floresta para negócios agrícolas que vão plantar para exportar, sem que a população local possa gozar ou tirar usufruto desses produtos. Cortam-se florestas para vender madeira, mas depois vão atacar a população que queima matas para plantar arroz ou para fazer carvão, e dizem que são eles que estão a causar a alteração climática. Recentemente, mandou-se soterrar uma lagoa (que também era um espaço sagrado, para construir um centro comercial e um espaço religioso de outro teor), o que resultou no aumento da inundação desse local. Isto entre muitos exemplos, só mostra que a nação é colonial, porque trabalha a soldo do capital, porque não trabalha para o bem do seu povo, e usa o seu povo e amansa-o com táticas, símbolos, bandeiras, credos, hinos e formas de controlo iguais aos do governo do colonialismo.
Caro amigo guineense, o que podemos fazer então para resistir tanto ao colonialismo internacional, quanto à colonialidade nacional e também local? Quais são as ferramentas que temos e quantas ferramentas temos para lutar contra a colonialidade estatal que destrói habitats, extingue animais em nome do capital? Se as leis do estado só protegem os poderosos e deixam desamparados os mais fragilizados qual é o nosso trabalho?
Ninguém gosta do colonialismo, não, nem o próprio filho do colonialista hoje fala disso como uma conquista benquista. Tem em vista, por exemplo, que o presidente de Portugal pediu desculpas e tal ao presidente do Brasil, dizendo algo assim: “Pedimos desculpas pelo colonialismo, porque prejudicamos os interesses do Brasil”, mas sobre nós aqui, nem um pio. E depois disso viveram felizes para sempre. Yupiiiii… Estava a brincar, não viveram nada, cada um continua na sua demanda. Marcelo, no entanto, não pediu desculpas aos africanos por Portugal os ter negociado como humanos escravizados, aliás, uma vez, ao falar na Ilha de Goré, chegou até a enaltecer o grandioso senso de justiça de Portugal ao abolir um mal que ele mesmo criou. Pois, o colonialismo não é bonito, por isso acredito que eles pensam que isto pode ser esquecido e que tudo fica fino desde que se refiram ao colonialismo como malefício. Mas se nós, guineenses, sabemos disso, se fomos e somos vítimas do colonialismo, por que raio continuamos o ciclo? Eu explico:
O colonialismo pode ser definido com este dito: é a ocupação de um território ou lugar por ação de uma força militar externa a esse lugar. Quando o colonialismo é bem aceite pelos indivíduos sob o seu domínio, o território passa a chamar-se de país ou de nação e a ação da exploração é realizada sob a alçada de uma bandeira, de um hino e de vários outros símbolos, manipulando a população e criando a condição para esta pensar que não é uma pária, porque pode votar lá na sua área, embora no geral não tenha mais fala. Mas como se deixa explorar em nome da pátria, é um grande patriota e não apenas um idiota. Foi assim e ainda assim é.
Caro amigo guineense, agora não são os brancos a viver em Portugal que estão a explorar a Guiné, somos nós próprios nascidos na Guiné, que de modo trivial agimos como rival do nosso próprio povo e usamos o povo para nos enriquecer, usamos as nossas responsabilidades de governar para vender facilidades a quem nos queira explorar, vendemos facilidades aos exploradores multinacionais ocidentais que continuam a colonização começada pelos seus ancestrais fazendo a exploração agora com o nome da globalização, vivendo da extração como desenvolvimento sustentável, mas que só está a tornar o nosso habitat em cadáver, pois é um extrativismo desmedido. Já disse antes isto e agora o repito: primeiro nós vendemos pessoas como produtos, agora estamos a vender a natureza e os seus recursos, tudo em nome do lucro, repetindo o mesmo curso, mas desta vez com um discurso anti-colonialista, mas sempre capitalista.
Caro amigo guineense, o povo da Guiné é claramente dominado, doutrinado, manipulado, segregado e explorado pelo próprio estado. Um estado que se diz soberano, entretanto manietado e manipulado pelos colonialistas, que hoje simplesmente se chamam de capitalistas, portanto, ainda servimos os mesmos amos, e carregamos o povo com o fardo de escravo moderno. É mais do que certo que o estado guineense desenvolve a sua colonialidade, o estado também trabalha para bancos privados e interesses económicos bem obscuros, que só mantém o povo no escuro e faz furos nos seus bolsos e nas suas vidas, esvaziando-os até dos direitos mais básicos, como a saúde e a educação.
Em 50 anos da dita independência fizemos tanta merda e com muita persistência, fizemos tantos estragos e buracos na vida e no sonho dos nossos manos, porque nunca nos afastamos daqueles que foram os nossos amos, e sempre continuamos a tentar ser mais brancos que esses próprios fulanos, e desgastamos, de modo inglório, num inteminável velório, os sonhos de utopia que, com promessas de melhor dias, mobilizou para a rebeldia jovens e companhia, para uma luta armada contra a opressão. Todavia, mantivemos a opressão e só mudou de configuração.
Entretanto, ainda não paramos e criticamos bem inflamados o colonialismo português que tinha sido estabelecido pelo estado português, e os pretos na Guiné ainda sofrem o revés do que o colonialismo fez e, hoje, por sua vez, gente de má rés usa o mesmo viés para controlar as fés dos povos reféns desse país com pés assentes na tradição colonial, criado em Berlim para explorar e gerar capital. Trocamos as bandeiras, mas mantivemos as fronteiras, disfarçamos as normas mas mantivemos as formas, lutamos com os tugas mas mantivemos a língua, copiamos as leis e nomeamos os nossos reis, ou presidentes ou ministros, ou outro termo sinistro, mas toda a estrutura, toda a postura, toda a compostura é colonial, sempre voltada para o capital.
Caro amigo guineense, antes da tal independência, o povo vivia na dependência de um sistema de classe chamado de Lei de Indigenato, que era algo ingrato para quem não era branco, porque determinava os rumos e desenhava os futuros. Separava as pessoas em três grupos: os indígenas (povos sem direito, os pretos), os assimilados (pretos cultivados e empoderados) e os brancos (só nascidos mesmo, não é, meus caros?). Ser um assimilado significava maiores possibilidades para ter melhores condições de vida e, para ser assimilado e ter melhores trabalhos, era necessário saber ler português, saber escrever português, saber falar português, saber vestir-se como branco e saber comportar-se como branco, saber dizer o pai-nosso, entre outros… Hoje na Guiné, para ter também melhores trabalhos é preciso saber ler português, saber escrever português, saber falar português, saber vestir-se como branco, saber comportar-se como branco, chegando muitas vezes o Kriol, a língua nacional, a ser proibido em estabelecimento escolar ou em instituição estatal. A Guiné-Bissau tornou-se uma extensão do projeto português da colonização e, com a adopção da lusofonização, do falar português, ou da CPLP, a Guiné acabou por ser uma representação do lusotropicalismo tão pretendido pelo antigo colonialismo, apenas num outro tipo de registo.